Publicado originalmente na TOP Revista.
Recentemente, marquei de tomar
um café com uma amiga da faculdade. Combinamos de nos encontrar em uma
cafeteria, e ela chegou atrasada. “Estava no Clube fazendo sauna”, me explicou.
Pedimos o café – R$8 cada um. Fazia frio, mas o ar-condicionado deixava o
ambiente aquecido e confortável. Não demorou, e esta minha amiga me contou que andava
estressadíssima, porque sua diarista havia abandonado o trabalho para cuidar
dos filhos. “Depois do Bolsa Família, esse povo não quer mais saber de serviço,
Jana!”. Foi o que ela me disse.
Olhei para fora. Do outro lado
da rua, um grupo de homens trabalhava na construção de um prédio. A maioria usava
manga curta, naquele frio horrível. Nós estávamos no ar-condicionado, tomando
um café superfaturado. Mas para ela, que estava fazendo sauna em plena terça-feira
de tarde, “o povo” era vagabundo.
Deixei a cafeteria pensando
sobre isso. Já era quase cinco e meia da tarde, e os alunos do Rui Barbosa, um
colégio particular caríssimo aqui de Carazinho, saíam da aula. Na frente da
escola, uma fila de carros aguardava os estudantes. Eram seus pais, que haviam
ido buscá-los – apesar de a maioria morar ali em volta, no centro. As crianças
vestiam um uniforme bonito e quentinho, e muitas usavam gorros, luvas e cachecóis.
Segui meu caminho. Perto de
casa, passei por um contêiner de lixo, e percebi que ele estava entreaberto. Ao
lado, um adolescente maltrapilho, usando bermuda e chinelos – naquele frio! – esperava
o menino mais novo, e por isso mesmo menor, que se encontrava dentro do
contêiner, catando papelão e latinhas de cerveja. Este menino tinha mais ou
menos a mesma idade das crianças pelas quais eu havia recém passado, e que
deixavam o colégio. Mas ele estava dentro de um contêiner de lixo. Ao lado deles,
um carrinho improvisado de entulhos e alguns cachorros – tão maltratados quanto
os meninos.
Cheguei em casa triste e
cansada. Triste e cansada de viver em uma sociedade incapaz de enxergar a
diferença abissal que existe entre aqueles dois meninos no lixo e aquelas
crianças na escola. Uma sociedade que usa casacos, luvas e gorros, mas acredita
que “basta se esforçar para sair da pobreza”. Uma sociedade cruel e ingrata,
que não reconhece os privilégios dos quais usufrui – e tampouco percebe a pobreza
gritante que existe bem embaixo do seu nariz.
Esta minha amiga sempre estudou
em colégio particular, e depois cursou uma faculdade também particular – assim
como eu. Esta minha amiga, que chama de vagabundo quem recebe o Bolsa Família,
nunca trabalhou na vida, porque nunca precisou. Porém, esta minha amiga, assim
como a sociedade onde vivemos, não compreende o tanto de benefícios que possui,
e por isso mesmo repete clichês do tipo “É só estudar”, “É só querer”, “Bandido
bom é bandido morto”, “Bolsa Família é coisa de vadio”.
Essa minha amiga não vê as
crianças que catam lixo, e nem os trabalhadores que carregam tijolos no frio,
enquanto ela toma um café de R$8 em uma cafeteria com ar-condicionado logo
depois de fazer sauna – tudo pago pelo papai.
Eu, assim como essa minha
amiga, também sou privilegiada. Tive todas as oportunidades deste mundo. Nunca
passei fome, nem frio, nem qualquer necessidade ou privação. Nunca catei lixo,
nunca morei na rua. Nunca sofri violência, preconceito, discriminação. Nunca entrei
em um contêiner. Por isso, se hoje eu sou uma pessoa honesta; se eu trabalho;
se eu colaboro com a minha comunidade e dou algum orgulho aos meus pais, não é
por que eu sou uma “cidadã de bem”. É por que tive sorte. Por razão que
desconheço, a vida permitiu que eu vivesse com conforto em um mundo tão
miserável e desigual.
Mas, ao contrário desta minha
amiga, eu não sou ingrata. Eu não acredito na meritocracia em uma sociedade onde
as oportunidades não são iguais. Eu sei que não cheguei até aqui só por causa
do meu esforço e dedicação; eu tive regalias desde que nasci. Eu enxergo os meus
privilégios, e eu também enxergo os meninos no lixo, e os trabalhadores de
manga curta, no frio.
Eu consigo me colocar no lugar
deles, e por isso posso garantir: se eu vivesse na pobreza, sem chances, sem perspectivas,
com frio, com fome, eu não seria uma “cidadã de bem”. Eu provavelmente enfiaria
uma arma na cara dessa minha amiga – que, neste caso, nem minha amiga seria – e
a mandaria me passar o dinheiro e o celular e calar a boca. E talvez, por ela
representar uma sociedade que sempre me desprezou, no fim eu atiraria bem nas
suas fuças, só de raiva.
E aí eu me tornaria um bandido
repulsivo. E todos diriam que eu deveria morrer – porque, afinal, bandido bom é
bandido morto e blábláblá. Eu nunca teria feito projetos em escolas, nem
escrito livros, e muito menos participaria de ações sociais. Eu não tentaria
tornar nossa sociedade melhor – pelo contrário. Eu atacaria esta sociedade com
a mesma fúria e desprezo com que esta sociedade sempre me atacou.
Entendam: eu não estou aqui
defendendo o criminoso. Quem errou, deve pagar, e fim. Mas seria inteligente de
nossa parte tentar prevenir o mal, ao invés de somente remediá-lo. Porque enquanto
ignorarmos a desigualdade e a miséria que assola nosso país, fechando os olhos
para nossos muitos privilégios, e repetindo os mesmos clichês que forjaram
nossa sociedade, seguiremos fabricando bandidos em série, como sempre fizemos.
Discorda de mim? Tudo bem. Mas
me responda: e se o privilegiado não fosse você? Se, ao invés de estar no ar-condicionado
tomando café gourmet, você estivesse no contêiner catando lixo? Ainda assim você
seria um “cidadão de bem”?
Eu não.